Eu odeio comida.

Mas como ser humano, igual a qualquer um de vós, tenho fome e as dores da fome são ainda mais odiáveis que a sua solução: comida. Não gosto de parar para comer, não gosto de cozinhar, não gosto de nenhum prato em particular. Não me importava que pudessemos ser atestados como veículos, com uma qualquer pasta de sabor minimamente agradável ou, até, uma infusão inodora, insípida, incolor. Indolor.

Nem sempre foi assim. Cresci entre refeições familiares com cordilheiras de puré de onde vertia molho para as almôndegas e coleções de brindes do Happy Meal. Fui educada com manhãs na cozinha em produção massiva de rissóis de carne e tardes de supermercado. E apesar de viver rodeada de opções, a única que me fazia feliz era a doçaria, as sobremesas, os gelados — se hoje odeio comida de uma forma geral, é porque essa alegria derreteu.

Eu odeio comida, porque a comida — vem-me à cabeça uma massa porosa, laminada a cobre — absorve tudo bastante bem, até os problemas. O prato de raia de pitau absorveu as discussões ao almoço de sábado. A bavaroise de morango absorveu o segredo de não ser caseira. Os panados de frango com arroz de tomate absorveram gritos de quarta à noite e os bombons o choro escondido debaixo da mesa. O gelado de chocolate absorveu os olhares do meu pai e, mais tarde, os comentários e ralhetes que soavam a facas nas mãos de um amolador.

Os gelados não podiam ser aqueles, não podiam ser tão grandes; as doses e os pratos eram demasiado; a menina não pode escolher o que comer; vê lá o que é que lhe dás; as pernas dela estão gordas, os pés estão tortos.

A verdade é que, se juntarem na mesma tigela um ácido cítrico — por exemplo, o sumo de uma ou duas laranjas — e bicarbonato de sódio — ideal para aliviar a má digestão, amaciar a carne ou eliminar manchas difíceis — o resultado será uma reação química efervescente. Por isso, o gosto pela comida não crescia, nunca cresceu. Tudo era absorvido, cada vez melhor: as palavras enfiavam-se no bife e na lasanha, algumas eram grandes e ásperas misturadas no arroz com as ervilhas. Mesmo as cordilheiras de puré deixavam de ser uma brincadeira bonita e davam lugar às dores de barriga, a todas as refeições.

Os pequenos prazeres passaram a ser segredo, um segredo só nosso, uma nova versão de malícia. O bicarbonato de sódio, afinal, também é um ótimo fermento para fazer crescer os bolos, em silêncio. Éramos nós contra o mundo, um chocolate para acalmar a nódoa negra e um shhhhh.

Todas as cinquenta e duas semanas do ano tinham notas de canela adocicada e azedos de vinagre. Tenho a certeza que as vossas semanas tinham também diferentes sabores com os quais lutavam, mas espero que poucos lutassem contra os sabores. Adorava a música do cuco, que finalmente podia decidir o que não comer, viesse o pau ou as chamas.

De todas as minhas semanas, uma guardava o dia. O dia esperando entre trezentos e sessenta e quatro outros, com fintas de enjoos, conforto calado ou horas de culpa. O dia celebrado, impermeável. O dia em que eu podia comer o que eu amava, aceite sem reprimendas, à frente de todos, finalmente.

O dia dos meus anos em frente do meu bolo de aniversário.





Bolo de Aniversário (2025)

Carolina Grilo Santos (Aveiro,1993) vive e trabalha no Porto. É artista plástica, produtora cultural e co-fundadora o projeto Paralaxe. Tem vindo a explorar o cruzamento da prática artística com conceitos e linguagens científicas sob um ponto de vista especulativo e poético. Já expôs em espaços como Casa Encendida, Sala Picnic e Aragón Park (Madrid), Galeria Nuno Centeno (Porto), CCVF (Guimarães) e Fórum Arte Braga. Destacam-se o Prémio Pedro Fortes para Melhor Primeiro Filme Português na Secção Verdes Anos do DocLisboa, em 2023, com a sua curta metragem by division and differentiation; a participação na exposição coletiva Devenir Isla - Inéditos 2022, com curadoria de Aina Pomar Cloquell para a Casa Encendida, Madrid; e aquisição, em 2023, pela Coleção de Arte Contemporânea da Galeria Municipal do Porto.